The Cranberries e a história da Irlanda por trás de suas músicas:

Você provavelmente ouviu Zombie, música mais famosa da banda The Cranberries, mas talvez não saiba a trágica história por trás da letra e do clipe.

Segue o fio para ler um pouco sobre história, guerra e música.
Zombie, música mais famosa da banda, é um hino motivado pelo cansaço. Após duas bombas atribuídas ao IRA serem implantadas em lixeiras, duas crianças (de 11 e 3 anos) morrem pelas explosões.
A tragédia é retrato do conflito entre as forças independentistas e o Reino Unido, mas remete a séculos de apagamento da cultura gaélica, inserção do cristianismo na história da Irlanda (que vai causar uma divisão que tem impacto até os dias atuais) e dominação inglesa na ilha.
Em 1993, ano do atentado, já havia um grande esgotamento por parte das duas Irlandas e do Reino Unido pelo fim dessas relações de conflito.
A letra retrata bem esse cansaço no trecho:
"It's the same old theme
Since 1916
In your head, in your head, they're still fighting" (É a mesma velha história desde 1916. Na sua cabeça, na sua cabeça, eles continuam lutando).
1916 se refere ao Levante da Páscoa, um dos eventos mais importantes da história pela independência da Irlanda. No dia 24 de abril, um grupo de pessoas ocupou o prédio central dos Correios, em Dublin, enquanto outros grupos tentaram invadir outros pontos estratégicos da cidade.
Na frente dos correios, Patrick Pearse lê a proclamação que declara a Irlanda um Estado independente e soberano.
O violento levante contra o domínio britânico é respondido com mais violência. Ao fim, inúmeras pessoas foram presas e executadas. Muitas que nem mesmo fizeram parte do Levante. Patrick Pearse foi uma das primeiras pessoas executadas.
A brutalidade e as execuções sumárias por parte das forças britânicas contra os irlandeses fizeram a opinião pública cair em peso contra a Inglaterra, além de fazer crescer o apoio popular à causa independentista.
A Inglaterra se viu obrigada a dar anistia a inúmeros condenados à prisão perpétua pelo levante de 1916, o que vai culminar na ascensão de novas organizações e lideranças que vão lutar por todo o Século XX pela independência da Irlanda.
O Levante de Páscoa é um dos mitos fundadores da República Irlandesa, assim como também um evento importante para os grupos que ainda buscam a emancipação por completo na Irlanda do Norte. Por todo esse contexto, além da genialidade da música, Zombie é a maior das obras da banda.
God Be With You (Ireland) é outra canção com poderosa denúncia às violências históricas sofridas pelo povo irlandês em séculos de dominação inglesa.
Em tradução livre, ela abre com o seguinte trecho:
“A verdade nunca se esconderá
mesmo que eu tente
eles tentaram tomar meu orgulho
mas eles só tiraram meu pai de mim…”
Na segunda parte, também em tradução livre:
“Às vezes eu sentia medo
mesmo que eu orasse
eu perdi minha religião, agora
você conseguiu tomar isso também, de alguma forma”
As disputas entre as igrejas católicas e protestantes são parte importante para compreensão dos processos históricos na Irlanda, mas o trecho também pode ser compreendido como denúncia ao apagamento da cultura celta, que foi sufocada por séculos pela presença inglesa na ilha.
Os militantes pela independência, que possuíam fortes influências socialistas, tinham como um dos objetivos também o resgate da língua gaélica, historicamente sobrepujada pelo inglês.
O refrão, apesar de toda denúncia e melancolia ao longo da letra, deixa uma mensagem de esperança: “God be with you, Ireland” (Deus esteja com você, Irlanda).
Outras questões históricas estão presente em outras músicas, como as consequências do machismo e do fundamentalismo religioso que geraram historicamente um severo problema para as mulheres em torno da questão do aborto.
A suposta “honra” feminina era tratada de forma rígida pela comunidade irlandesa, especialmente a católica. A falta de liberdade era tão latente que as mulheres que engravidassem solteiras poderiam ter seus filhos tomados para um convento ou orfanato gerenciado pela igreja.
Tão grave quanto, era a destruição da vida social das mulheres que engravidavam solteiras. Por isso, era frequente que muitas fugissem da Irlanda de forma clandestina para serem submetidas a métodos pouco seguros de aborto em outros países, antes que a gravidez fosse descoberta.
É sobre isso que Dolores O’Riordan canta em “So Cold In Ireland”, quando o trecho que diz “Eu sabia que chegaria o momento em que eu tivesse que partir e seguir em frente
Olha o que eles fizeram comigo
Eles me pegaram pela mão
E isso está me matando… me matando… me matando…”
Sem esquecer das marcas que ficam para o resto da vida de uma mulher que passa por todas essas violências, o trecho que diz “mas estou preocupada por voltar à Irlanda… eu vejo que não há nada lá para mim” encerra ressaltando que provavelmente, a vida nunca mais...
... será a mesma, pois aquela mesma sociedade misógina que a forçou a fugir, continua lá, intacta.
Por fim, uma das obras mais geniais da banda é a épica "Bósnia", que demarca um olhar da banda para além da Irlanda. A música fala sobre os horrores da Guerra da Bósnia (1992 a 1995), que está inserida no contexto da dissolução da Iugoslávia.
A Bósnia estava localizada no meio de um conflito entre sérvios e croatas, até que acaba diretamente envolvida na guerra que, entre diversos crimes envolvidos, está presente o genocídio étnico contra os muçulmanos bósnios.
Além da letra, que foca principalmente nas crianças como vítimas da guerra, Bósnia também deixa sua mensagem no som. A bateria faz alusão à marcha de guerra e todo o clima remete à tristeza e melancolia de um país que está sendo destruído pelo conflito.
A música se encerra com a música de uma daquelas antigas caixinhas de bonecas bailarinas, se referindo às milhares de crianças mortas no Cerco de Sarajevo. Estima-se que 85% das vítimas do Cerco de Sarajevo eram civis, entre eles crianças e idosos.
A contradição entre as pessoas que assistem à guerra e as que perdem suas vidas fica explícita no texto “And we all sing songs in our room, Sarajevo erects another tomb” (... e todos nós cantamos canções em nossas salas, e Sarajevo levanta outra tumba).
As posições anti-guerra estão sempre presentes em diversas músicas dos Cranberries, como Warchild, mas o trecho final de Bósnia sintetiza perfeitamente a forma como a banda encara o tema, trazendo denúncia e esperança:
“Algumas coisas mudariam se nós quiséssemos
Sem mais medo para as crianças
Há bebês em suas camas
e terror em suas cabeças
pelo amor da vida! Quando será que os santos entrarão marchando?”
The Cranberries possui várias músicas com temáticas ricas, cheias de mensagens históricas e sociais, além de musicalmente ser impecável. Dolores é uma das vozes mais marcantes da música e espero que esse fio tenha atiçado a vontade de ouvir essa, que é minha banda favorita. ☺️
Uma informação adicional sobre o resgate da cultura celta: em 2018, Cranberries lançou uma demo inédita chamada Íosa, 100% cantada em gaélico, idioma histórico dos irlandeses, anterior à presença inglesa.

O resgate do gaélico foi pauta central da luta pela autonomia irlandesa.
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