O QUE É ANACRONISMO E COMO ISSO SE APLICA NA HISTORIOGRAFIA - a thread
Com essa crescente inquietação sociopolítica em escala global, a história tem sido cada vez mais visada e utilizada tanto para quebra de paradigmas quanto para a manutenção de outros, e um dos conceitos historiográficos mais emblemáticos é ele: o anacronismo
De forma bem geral, anacronismo é a aplicação de conceitos/juízos de valor, argumentos e afins que não se alinham com o período histórico analisado e constituem uma grande problemática na análise e na construção de qualquer discurso
Cada conceito ou valor tem sua especificidade de acordo com onde foi cunhado, quando foi cunhado e com qual finalidade foi cunhado. Tentar aplicar esses conceitos e/ou ideias em outro contexto histórico generaliza e dificulta absurdamente o entendimento
Por exemplo: o conceito de escravidão greco-romana difere absurdamente do conceito de escravidão do período das grandes navegações por uma série de fatores. Não faz sentido algum dizer que ambos os sistemas são iguais porque temos pessoas sendo comercializadas
"Putz Maria, mas não estão vendendo gente igual? É tudo a mesma coisa"
Não. Dizer que dá no mesmo é ignorar que a escravidão em Roma e nos territórios dominados pelos portugueses tinha diferenças profundamente sensíveis, especialmente na questão racial
Não faz sentido categorizar um acontecimento em locais diferentes, em períodos diferentes e com justificativas diferentes como se fossem a mesma coisa. E isso a gente pode aplicar pra qualquer análise histórica, pois nada na história é repetição, não existe história cíclica
"Pode-se dizer que o historiador está como que suspenso entre duas épocas. Ele alternadamente sobe a uma e desce à outra, com a rapidez da escrita." (BARROS, 2017)
"Estas duas épocas – a sua própria, de historiador, e a do processo histórico examinado, nomeadamente a das fontes e do objeto em estudo – têm cada qual sua linguagem, seu conjunto de feixes discursivos." (BARROS, 2017)
Outro bom exemplo de anacronismo é a utilização por exemplo, da ideia de Japão Feudal, se referindo ao Período Sengoku. O sistema feudal é uma estrutura MEDIEVAL EUROPEIA e o Período Sengoku ocorreu no que seria a Idade Moderna, para além de outras especificidades feudais (+)
Como a presença da Igreja Católica, o conceito de suserania e vassalagem, etc. Elementos esses que não se encontram dentro do período japonês citado. Sendo assim, porque precisamos usar a história europeia como régua de análise no que diz respeito a outras culturas?
Voltando à questão do anacronismo: não faz sentido que eu, no século XXI, leia um documento do século XVI e faça um juízo de valor do que tá ali, me baseando pura e exclusivamente na minha visão de mundo e ignorando a diferença dos contextos históricos
E aí entra uma grande dificuldade nisso: a questão racial. Delicadíssima quando se trabalha com história, e que muitas vezes se liga com o anacronismo, como exemplo a questão da etnia de Cleópatra: boa parte das opiniões levam em consideração o conceito atual e ocidental de raça
e exclui uma série de outros fatores e minúcias. A mesma dificuldade se estende para crimes bárbaros ao longo da história: eugenia, infanticídio, estupro, homicídio, etnocídio e etc. E aí é que a chapa esquenta: posso dizer que X autor é racista/machista ou afins?
Antes de tudo, é importante lembrar que esses crimes ocorrem e o que muda de sociedade pra sociedade e de um período histórico pro outro é o valor e o status que se confere a esses atos. Um estupro é sempre um estupro, o que muda é como a sociedade X em período Y vê e julga isso
Isso quer dizer que tá proibido apontar incongruência e/ou discursos nocivos só porque o autor foi de X época? Dê uma pesquisada básica sobre o autor. Ele teve acesso à educação? No período dele existiam discussões sobre o assunto? Qual o conceito do ato X na época desse sujeito?
Não se deve pegar um autor do século V e dizer que ele foi LGBTfóbico ou machista, pois conceitos como esse nem existiam nessa época. Como pegar a tolerância greco-romana a relações homo e dizer que os gregos e romanos eram inclusivos se o conceito de homossexualidade n existia?
O que é diferente de criticar autores como Monteiro Lobato, abertamente eugenista, profundamente racista e apoiador de políticas segregacionistas. Ele é produto de seu tempo histórico? Sim, e isso não o exime dos absurdos que escreveu e das simbologias racistas que criou
É anacrônico esperar que um sujeito branco e elitizado dos anos 40/50 tenha a mentalidade de um progressista dos anos 2020, mas isso de maneira alguma significa que a obra dele seja menos ofensiva ou problemática. O racismo na obra existe, o que muda é como ele vai ser recebido
Portanto, sempre que forem fazer uma análise de conceitos de valor, vale se questionar: quem foi o autor? Qual o contexto histórico dele? De que maneira o conceito que estou analisando era visto na época dele? Esse conceito sequer existia? Ele teve acesso a essas discussões?
E a partir daí dá pra se ter uma visão mais ampla e uma autocrítica mais válida, sempre evitando o anacronismo e ao mesmo tempo evitando repassar visões que já deveriam ter sido superadas.
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