Esse trecho da entrevista do Mourão para a DW é assustador. É transparente na sua intenção: no método, no fundamento que orientou a formação de um ecossistema à direita nas redes sociais, em meados de 2014, como parte final de uma "operação limpeza".
"Operação limpeza" é a forma como as operações das FFAA para ocultar seus crimes durante a Ditadura Militar ficaram conhecidas. Ocultação de cadáveres, intimidação de testemunhas, até mesmo reordenação espacial (construção de estradas, por exemplo) eram métodos utilizados.
No Araguaia, por exemplo, tivemos um pouco de tudo: quase todos os corpos dos guerrilheiros (e dos camponeses) mortos durante a Guerrilha do Araguaia foram "desaparecidos", uma BR foi construída sobre os restos dos antigos "buracos" (depósitos de presos e mortos)...
A região toda foi ocupada por militares, colocada sob a tutela do Major Curió, que até hoje exerce influencia política considerável na região.
Ao contrário do que muita gente acredita, a Ditadura Militar sempre se preocupou em esconder os rastros de suas violações. Fora montado todo um aparelho paraestatal de repressão (e isso incluía a ocultação).
Uma das ferramentas de ocultação era, justamente, a ocupação da esfera pública, para impedir que o debate sobre o aparelho repressor viesse a tona. Não estamos falando tão somente da responsabilização individual, mas da própria estrutura do Estado.
A organização das polícias no Brasil, por exemplo, todas elas, tem a sua origem nesse aparelho repressor. Por isso os casos de tortura, violência, etc... não são corrupções, são congênitos.
Fomentar um debate amplo e eficaz sobre a Ditadura Militar implicaria numa reforma da própria estrutura do poder no Brasil (inclusive, passando pela estrutura fundiária). E isso não poderia ser permitido, como não foi.
Não é de se estranhar que, em 2014, grupos ligados a militares, tenham financiado uma verdadeira campanha de desinformação contra a Comissão Nacional da Verdade.
Lembram do Clube Militar ocupando o noticiário divulgando nomes de pessoas supostamente mortas por militantes de esquerda? Isso foi apenas a parte mais visível do processo, verdadeiras milícias se organizaram no whatsapp e facebook. https://tvuol.uol.com.br/video/clube-militar-divulgara-lista-com-mortos-pela-resistencia-armada-a-ditadura-0402CD1A3070C0995326
Eu trabalhava na Comissão Nacional da Verdade, ao lado da historiadora Cecília Adão, coordenei os trabalhos GT Araguaia. Nessa época comecei a receber seguidos ataques e ameaças destes grupos. Por isso passei a monitorar este povo (e dai surgiu minha pesquisa nas redes).
O plano deles era óbvio, era impedir que o material organizado pela Comissão Nacional da Verdade tivesse ampla divulgação. Como fariam isso? Traçavam planos abertos de ocupar e bombardear grupos de whatsapp com a sua versão dos fatos e, vejam, atrair a atenção por meio do ultraje
A insistência em reabilitar a imagem do Ustra vem dai. Ustra não era um militar de alta patente, ele, como muitos dos envolvidos diretamente no aparelho repressor, tiveram uma carreira medíocre. Se fez coronel após reformado. Por qual motivo se tornou símbolo desse movimento?
Ustra sempre foi um caso paradigmático: as suas ações - fartamente documentadas - se tornaram uma espécie de padrão na imaginação que temos do aparelho repressor. Basicamente, quando se imagina tortura na ditadura, se imagina o "trabalho" do Ustra.
A Verdade Sufocada já circulava desde 2006, mas de 2013 em diante, recebeu ampla divulgação. Grupos alinhados com essa estratégia de desinformação se empenharam na sua divulgação. Um dos motivos: seu nome gerava polêmica e atraia atenção.
Eu vi isso nos grupos. Falar sobre Ustra era "polêmico", gerava engajamento no facebook. Eles organizavam ataques nas postagens relacionadas ao trabalho da CNV para fazer propaganda do livro, do sujeito. Bastava um aparecer para que todas as atenções se voltassem para aquilo.
"CNV faz diligência na Casa da Morte em Petrópolis". Nas respostas apareciam falando do Ustra, atraindo a atenção de todos os lados. Gente alinhada aparecia apoiando, pessoas razoáveis apareciam para brigar. Esqueciam da casa da Morte, só se falava do Ustra.
Eu já falei disso em diversos lugares, a citação ao Ustra feita por Bolsonaro durante a votação do impeachment não foi de improviso, foi um ato pensado. Já se especulava sobre isso nos grupos com uma boa antecedência.
E ai que a história: estes grupos funcionavam como verdadeiras centrais de cálculo, alimentando grupos maiores e formando verdadeiros militantes virtuais. Pessoas eram radicalizadas e transformadas em "agentes multiplicadores".
Nem todo material produzido nesses grupos era "radical", muitos repetiam exatamente a mesma linha de raciocínio do Mourão. Ainda é muito cedo para falar sobre o que aconteceu, é preciso esperar a história seguir seu curso, toda história tem dois lados, etc...
Famosa estratégia do Tabaco: a industria do Tabaco, no EUA, para combater os relatórios médicos que diziam que cigarro causava câncer, financiavam verdadeiras campanhas de desinformação cujo único intuito era fomentar a dúvida na população.
"tem médico que diz que mata, tem médico que diz que faz bem", "tem gente que diz que eles foram monstros, tem gente que diz que eles foram heróis".
A estratégia desses grupos deu tão certo, mas tão certo, que não é nenhum exagero dizer que estes grupos tiveram um papel decisivo nas manifestações de 2015-2016 e posteriormente nas eleições de 2018.
Não é coincidência que quatro anos após o relatório da Comissão Nacional da Verdade tenhamos militares no governo. Que o Presidente seja Bolsonaro, uma figura que sempre foi idolatrada por estes grupos, justamente por encabeçar essa estratégia.
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