"Uma aspirina por dia deixa o médico mais longe”. Essa máxima começou a ser construída no Clube dos Otimistas de Glendale, e foi o pontapé inicial pra salvar milhares de vidas. Mas agora, sua prescrição indiscriminada deve parar.

Se liga no fio pra entender.
Sumérios, egípcios e Hipócrates usavam casca de salgueiro para aliviar dor, febre e inflamação. Em 1763, o Reverendo Edward Stone afirmou que “muitas doenças carregam consigo a cura", pela coincidência que o salgueiro cresce também onde há doenças febris tropicais, como a malária
Durante o século XIX, diversos pesquisadores tentaram extrair a substância anti-inflamatória: a salicina. Apenas em 1897, Felix Hoffman, funcionário da Bayer, conseguiu modificar o ácido salicílico a ácido acetilsalicílico (AAS), um composto com menos irritação gástrica.
Lawrance Craven, presidente do Clube dos Otimistas de Glendale e, como todo cirurgião, conhece bem as propriedades hemorrágicas do AAS. Baseado nisso, ele publicou na década de 50 quatro estudos observacionais com >1500 pacientes e nenhum infarto.
Parece com relatos de Floriano (PI) e pseudo-cientistas de Madrid? Sim, mas Lawrance Craven sabia exatamente a força das suas observações: “esses achados têm valor de impressões preliminares e podem ser aceitas ou refutadas por pesquisas subsequentes".
Palmas para Craven.
Ironicamente morto por um infarto, Craven não pôde ver o lançamento do ISIS-2 (1988), um estudo que revolucionou a Medicina ao demonstrar que o AAS reduz em 23% chance de morte num cenário de infarto agudo. Ela, sozinha, salva da morte 1 a cada 24 pacientes infartando.
Se salva a vida de quem está infartando, também deve evitar o infarto, não é mesmo? Virou rotina a prescrição do AAS fora do cenário do ISIS-2. O ATT, metanálise da Lancet, demonstrou uma pequena redução de eventos vasculares (infarto, p. ex.) às custas de aumento de sangramento.
O ATT incluiu estudos heterogêneos e foi considerado apenas gerador de hipóteses. Estudos mais fortes eram precisos.
Em 2011, o AVERROES trial, destinado pra outro tema, demonstrou que o AAS tem tanto potencial hemorrágico quanto a Apixabana, considerada um potente anticoagulante
Em 2018, assistimos ao lançamento de três trials (potenciais confirmadores de hipótese) - ARRIVE, ASCEND e ASPREE. Em metanálise moderna, o AAS evita 1 evento vascular a cada 265 usuários em 10 anos. No mesmo período, ele causa sangramento grave em 1 a cada 210 usuários.
A Guideline Americana de Prevenção de doenças cardiovasculares de 2019 já define como "de benefício incerto" o uso mesmo em pacientes com <70 anos e sem risco de sangramento.
Para os que possuem > 70, a diretriz contra-indica o seu tratamento (classe III: causadora de dano).
E em diabéticos? Por causa dos resultados do ASCEND, a ADA mudou o famoso texto de sua diretriz na atualização de 2019. Antes: usar em ≥ 50 anos com mais de 1 fator de risco blablabla. Agora: em pacientes de alto risco de infarto, depois de discutir os riscos com o paciente.
Por ter mais potencial hemorrágico do que prevensor de infarto, não existe mais classe de indicação I (forte) ou IIa (moderada) para o uso do AAS em quem nunca teve infarto.
Seu uso nesse cenário deve ser uma exceção, e não uma regra.
Esse fio mostra o caminho de ume evidência.
- Uma evidência anedótica (Craven);
- Estudos em populações de risco (ISIS);
- Por algum grau moderado de evidência extrapolaram a prescrição;
- Evidências mais fortes (trials randomizados) refutaram essa evidência.
Sem narrativas.
You can follow @josenalencar.
Tip: mention @twtextapp on a Twitter thread with the keyword “unroll” to get a link to it.

Latest Threads Unrolled: