ReportArte, edição 1 — sobre o Luto na pandemia.
Um fio.
Esse texto de hoje é uma co-elaboração que eu resolvi chamar de ReportArte: reportagem & arte. Um texto que tem meu jeito de escrever e as contribuições de pessoas que eu conheço e admiro.
Essa primeira edição fala sobre a questão do luto na pandemia e conta com os conhecimentos das magníficas e absurdamente humanas psicólogas Sarah Gimbernau ( https://www.instagram.com/sarah.gimbernau/) e Daniela Trindade ( https://www.instagram.com/danitf_/ ).
A arte é por conta do talentosíssimo e sensível Vienno ( https://www.instagram.com/vienno_/ ). Espero que curtam! Boa leitura.
Quando comecei a pensar no texto, questionei como era a minha relação com o luto.
E logo me veio a mente todo processo que passei internamente depois da perda abrupta do meu irmão, Luis Felipe, em 2018. Meu irmão era dependente químico e sofreu uma overdose. Morreu aos 24 anos.
O processo todo foi muito doloroso pra mim. Desde o momento que antecedeu o desastre, passando pela notícia em si que rasgou meu corpo em dois e culminando com um período de 48h sem dormir para me despedir do meu brozinho tão rapidamente.
O luto começou logo depois. Foram alguns meses em que meu corpo e que minha mente se acostumaram com a ausência dele na Terra. Muito choro em espaços públicos, alguns picos nervosos de pressão alta e uma tristeza profunda que me tirou o riso, a vontade de sair...
de beijar na boca, de beber, de curtir a rotina. Com o luto eu aprendi a gostar de ficar sozinho — algo que sempre me amedrontou.
O luto firmou minha ferida e fez com que ela cicatrizasse. E eu tive o privilégio de viver isso com uma certa complacência do trabalho, da família e das amizades.
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10212737339257055&set=pb.1494256595.-2207520000..&type=3&theater
Ninguém, de fato, compreendeu o que se passava porque eu me forcei a ser forte. Besteira. A gente se força a ser forte. Mas, no final… A compaixão fala mais alto.
O período mais difícil do luto passou.
Acredito que passei as chamadas 5 fases do luto que psicólogas e psicólogos definem que existe: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Óbvio que até hoje eu fico triste. Cada um vive o luto do seu jeito.
Mas, o barco seguiu seu rumo, num rio lamurioso, porém necessário para chegar até outro cenário.
Todos precisam viver o luto, quando uma mudança brusca dessa acontece.
Minha vivência me coloca em uma situação muito sensível. Cada vez que alguém próximo perde alguém, eu perco um pouco do meu irmão de novo.
Logo, esse momento atual de covid19 matando cerca de 1.200 por dia tem sido extremamente massante. Eu imagino as mães, as avós, os pais, as tias… Os irmãos dessas pessoas. Os velórios rápidos… As revoltas nas entrevistas. A tristeza do conformismo. O descaso. As valas comuns.
A serenidade melancólica de entender que alguém partiu para uma melhor. É duro.
Além disso, moramos num país extremamente racista e violento que escolhe pessoas para descartar. Essas pessoas têm, principalmente, mães… Que corriqueiramente aparecem no jornal lamentando a perda de um filho ou de uma filha. A pior dor do mundo.
A dor que estampa cada cara de mãe é a repetição da cena dor e devastação que eu vi quando fui incumbido de dar a notícia da partida do meu irmão pra minha mãe. Cruel.
E me pergunto sempre: será que esses lutos estão sendo vividos? Serão vividos?
O luto — que cria uma falsa imunidade, porque a gente acha que entende a dor dos outros, mas na verdade só a vive de novo.
O luto — que é importante para a passagem, para a viagem por vários espaços que nos transportam de uma consciência para outra.
Nesse momento, percebi que o luto está sendo praticamente negado às pessoas que perderam os seus. Pior, pelas últimas ações e declarações… Vi que parte significativa de nosso sistema e algumas de nossas mais altas autoridades estão minimizando o impacto dessas mortes todas...
que — em 3 meses — abateram mais de 60 mil pessoas (eram 30 mil quando terminei de escrever esse texto, e dobrou quando o publiquei). A consequência dessa mensagem permeia toda Sociedade. Muitos simplesmente não estão ligando pra todo impacto disso.
Fui atrás de ajuda para compreender.
Segundo a minha amiga psicóloga Daniela Trindade, algumas pessoas e algumas instituições do Estado estão tratando a morte de um jeito muito assustador e desumano.
“Temos pessoas dizendo, o Estado dizendo que todo mundo vai morrer um dia, que os velhos vão primeiro… E isso naturaliza a morte” — diz.
A Dani afirma que isso é muito preocupante porque essa “naturalização excessiva” causa uma indiferença, o que preocupa pela própria característica dessa indiferença. “Ela é perversa” — conclui.
Entrar em contato com a morte, de acordo com a Dani, é um fator que naturalmente vai causar tristeza. Mesmo a gente sabendo que isso vai acontecer com qualquer um.
Mostrar a sensibilização é escancarar a nossa humanidade com tudo isso.
Tipo: que bom que você fica triste quando morre alguém que você gosta! Ou quando você perde o emprego, termina um namoro… Se muda de casa. Que bom!
Porque quando perdemos essa sensibilização através do exagero dessa naturalização, perdemos humanidade. Quando vemos que é “indiferente” até mesmo o perigo de 2 milhões de pessoas parecerem no Brasil até a imunização coletiva… Percebemos que realmente tem algo falho no humano.
Os números servem para chocar, mas para também tentar “amenizar” algo impossível de ser amenizado.
É duro ouvir que, numa população de 200 milhões, 2 milhões de pessoas (1% da população) podem morrer em pouco tempo e isso seria apenas “natural”.
Ou que seria “apenas dano colateral” para se livrar da doença com a tal da imunização de rebanho.
Esquecemos do fator sofrimento nessa lógica eugenista de priorização dos mais fortes. Isso é bizarro.
A morte é trágica pra quem vai. Envolve sofrimentos em muitas vezes. E altamente desestabilizante para quem fica. Envolve sofrimento igualmente em muitas vezes.
Como disse acima, no dia que escrevi esse texto, eram 30 mil pessoas mortas. Hoje são 60 mil pessoas que pereceram.
E o número do sofrimento causado por essas milhares de despedidas. Quem avalia?Quem calcula?
E porque simplesmente estão desprezando esse impacto?
Como expliquei, a partida do meu irmão me deixou fisicamente e mentalmente sensível por tempos. Afetou também minha mãe, tias, avós, pai… A namorada dele, amigas e amigos dele. Uma morte se desdobra em diversos episódios de ansiedade, de depressão, sintomas diversos…
60 mil também. Milhões também. E isso tem sido escondido por trás de uma fumaça tenebrosa de irrelevância.
Minha outra amiga e praticamente irmã, a psicóloga Sarah Gimbernau, evoca que grande parte dessa indiferença de algumas pessoas em relação a essa tragédia coletiva se dá ao fato de que nós não vemos essencialmente o que está matando tanta gente em um período espaçado.
Diferente de acidentes que marcaram nossa memória, como aquelas quedas de avião ou o incêndio da boate Kiss (que aliás, eu & Sarah vimos juntos pela TV, em 2013).
“O que acontece com o vírus é que ninguém tá vendo ele pra dizer se ele existe ou não; é um microorganismo letal, mas invisível. O start dele foi muito longe de nós, então só víamos as notícias das pessoas mortas em países longínquos, o que fazia ficar ainda menos palpável” — diz
Difícil a gente aceitar que até o presidente da República tenha esse tipo de inteligência emocional rasa e também não seja alguém mais sensível. Ou que não tenham ninguém no seu entorno que chame atenção pra isso.
Mas não é surpreendente que ele, seus apoiadores e parte de nossa sociedade sejam indiferentes ao sofrimento. Somos um projeto mal feito de eliminação.
Apesar de ser “o destino” de todos… Fomos moldados a ver no país uma certa predileção do Estado, das instituições, da imprensa e de certas pessoas em normalizar e naturalizar algumas mortes mais do que outras. Isso quando não é o próprio Estado que as causa.
A indiferença social e governamental não é nova. Pensemos nos corpos que nossa política e nosso Estado tornou mais frágeis e na maneira com a qual esses foram e são descartados com a promessa de que um “bem comum” está sendo construído.
Chamamos isso de Necropolítica, a política da morte.
O conceito é talhado através de estudos filosóficos de pensadores negros e pensadoras negras. A filósofa Sueli Carneiro é um exemplo. Uma subdivisão da Biopolítica, que estuda movimentos políticos que controlam a nossa vidinha
O Brasil é um país que se habituou a ver personalidades e politicas públicas causando OU desprezando as mortes negras, jovens, femininas e periféricas em seu território sob o pretexto da segurança pública ou “Guerra às Drogas”. E ainda politizam o enfrentamento dessa violência.
A reação furiosa ao assassinato de um adolescente preto de uma favela carioca se torna “ideológica” do ponto de vista dos governantes de plantão. Já que, pela lógica necropolítica, seu desparecimento da face da Terra é tudo como “dano colateral”...
, “natural”, “esperado”, “coisa do destino cruel a que essas pessoas já fazem parte”.
Salvas todas as devidas proporções, especialmente o Governo Bolsonaro tem tratado a morte por covid19 também como “dano colateral” — só que um efeito indesejável à prometida imunização de rebanho.
Já as reações indignadas e furiosas a essas mortes e as medidas sanitárias para evita-las são tidas como “ideológicas”, muito por parte de uma “grande conspiração esquerdista internacional”. Doidos.
Necropolítica.
E nessa, os sofrimentos se cruzam e se somam.
Não por acaso, em chão brasileiro, a covid encontrou mais força para matar em terrenos onde a população desprezada pelo poder público habita.
E é dessas vidas que o poder público parece não se importar em perder.
Aí que o luto fica ainda mais difícil e a consequência de sua dificuldade para existir, ou da sua inexistência, torna nossa sociedade ainda mais vulnerável.
A Dani fez uma análise sobre o como o “direito ao luto” é privado nessas populações já habituadas a perder a vida e ver essa perda ser encarada com “naturalidade”.
Das populações mais marginalizadas, segundo a Dani, sempre foi tirado o direito de se despedir e de viver o luto. Pelas batalhas da vida, pela necessidade econômica. Pela falta de amparo.
“Eles não podem ter esse momento. A condição humana de sentir está sendo tirada e muitas vezes isso é tão cristalizado dentro dessas pessoas que muitas vezes elas acabam entrando num processo de não-permissão de se fragilizar diante da despedida de um ente querido” — afirma.
Ela completa dizendo que as pessoas que conseguem até entrar nesse processo não se permitem viver o luto por completo e, assim, de modo geral… Nessa população encontramos mais pessoas que entram em adoecimento. Muitas vezes silencioso.
“Pode ser psicossomático, orgânico… Pode levar a vícios, como o de bebidas… Até para tapar aquilo que está sendo sentido. Uma patologia orgânica” — explica essa maravilhosa psicóloga e antiga professora do Cursinho popular que eu dou aula.
As situações que estamos vendo todos os dias podem ser devastadoras. São pessoas que partem com uma doença altamente contagiosa, higienizadas rapidamente, lacradas em caixão, enterradas às pressas…
Vítimas de uma praga que é subestimada e ironizada pelo presidente da República e seus não-ministros, com objetivos totalmente obscuros e difusos. Ou seja, até o ritual de despedida é afetado.
Sarah ainda completa e considera que isso tudo é perigoso porque nossos rituais de despedida são cruciais para a elaboração do processo de luto.
Ela me explica: “o velório, por exemplo, é um momento de vigilância, onde a família da pessoa que faleceu permite que a alma faça a travessia em paz. Essas pessoas mortas [pela covid] em primeiro lugar, não podem ser veladas, porque quem morre ainda transmite essa porra depois".
Ainda ela: "o velório é um dos momentos mais importantes de elaboração da morte, porque é permitido ver o corpo da pessoa que amamos ali, inerte”.
É uma fase do luto como processo.
E a Dani concorda: “o luto precisa ser vivido. Ele tem que ser sentido. E quando a gente fala desse processo da pandemia (…), os familiares não têm esse ritual fúnebre — e não ter esse ritual prejudica o processo de enlutamento".
Ela continua: "isso também acaba ficando perigoso e pode causar outras patologias”. Ela ressalta que alguém que perde alguma pessoa nesse período atual faça algum ritual fúnebre dentro de sua vontade, sua cultura, religião, ou do que se acredita como despedida. É necessário.
Por isso é importante pensarmos em como podemos introduzir novos rituais para vivenciar “corretamente” e de forma saudável esse adeus. Mídia, governo, empresas… Precisamos dar essa atenção.
As consequências do impacto desse não-luto e dessa indiferença latente podem aprofundar as feridas em uma gente tão sofrida. Carente de respostas. Carente de estrutura. Carente de acolhimento e amparo.
A falta de uma atenção psicológica universal, by SUS mesmo, em saúde básica, ou dentro das escolas… Se mostra através do nosso despreparo total em considerar essencial a vivência do luto.
Na situação em que nosso país observa um aumento vertiginoso no número de casos por covid, não podemos deixar sem ajuda aqueles e aquelas que vão ficar após dolorosas partidas. Nem aqueles e aquelas que ficam sem poder jamais receber um acolhimento depois de tanta violência.
Precisamos exigir. Lutar por essa vivência. Luto também é luta.
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