A linguagem neutra não é errada e eu posso explicar porque — Fio
Constantemente aparece alguém dizendo que a linguagem neutra é “errada” e quem faz uso dela está estragando a língua portuguesa. Como estudante de letras — língua portuguesa, posso explicar porque essas afirmações são falsas.
Eu me baseei principalmente nas teorias linguísticas sociolinguística e funcionalismo pra escrever esse texto, mas fiquem tranquilos que eu deixei tudo bem explicadinho pra vocês entenderem e vai sim ter referências no meio e final disso porque eu não tiro as informações do cu.
Primeiro eu preciso deixar bem claro o que eu quero dizer com linguagem neutra. Os pronomes “elx” e “el@” NÃO entram nisso, pois não são legíveis por humanos e muito menos por leitores de tela — um software que geralmente pessoas cegas usam para utilizar o celular e computador.
Já os pronomes elu, elo, ou qualquer outro que substitua as vogais por outras, e a desinência de gênero com a letra -e no final das palavras (bonito, bonite), são legíveis por ambos humanos e por leitores de tela, e é dessa linguagem que vou falar aqui.
Vamos começar com essa citação de Marcos Bagno:

“Não existe erro de português. Existem diferenças de uso ou alternativas de uso em relação à regra única proposta pela gramática” (BAGNO, 1999, p.142).

Não existe erro de português! Mas… por que não? E a norma padrão?!
Vamos por partes. A língua é uma ferramenta social e seus principais objetivos são a comunicação e expressão. Por isso, ela também é um organismo vivo, sendo modificada todos os dias por seus falantes com a intenção de que ela possa atender às suas necessidades.
“O processo de gramaticalização ocorre devido às necessidades de comunicação não satisfeitas pelas formas existentes no sistema linguístico e à existência de conteúdos cognitivos para os quais não existem designações linguísticas adequadas.” (HEINE et al., 1991, pp. 19-30)
A norma padrão prescreve regras de como devemos falar e escrever que devem ser usadas em contextos formais, ou seja, no vestibular, em um artigo científico, etc; mas todos nós fugimos dessa norma nas nossas falas e textos diariamente, em maior ou menor nível.
Esses diferentes usos da língua são chamados de variação linguística.

Variações não-padrões podem ser vistas como inadequadas se usadas em contextos formais, mas, pela visão da sociolinguística e do funcionalismo, elas não são erradas.

Agora vamos falar de gramática.
Existem dois tipos (concepções) diferentes. A que você já conhece e deve ter aprendido na escola é a gramática prescritiva, aquela que prescreve regras de uso, é a norma padrão. Mas também existe a gramática descritiva, que descreve a língua como ela é, de fato, usada.
“A gramática (descritiva) é concebida como um conjunto de regras utilizadas pelos falantes na construção real de enunciados, e não como regras ou normas que devem ser impostas ou adotadas por quem escreve e fala de modo diferente do que é observado ou descrito.
Para essa concepção de gramática, será considerado gramatical ou aceitável “tudo o que atende às regras de funcionamento da língua de acordo com determinada variedade linguística” (TRAVAGLIA, 2001, p. 27).
“Tá, mas o que TUDO ISSO tem a ver com linguagem neutra?” Ora, linguagem neutra é uma variação linguística criada pela comunidade não-binária para atender sua necessidade de um pronome que fuja o binário pré-estabelecido na língua portuguesa.
Por não ser oficial, essa linguagem pode ser vista como inadequada em contextos formais, mas não existe nada de errado em usá-la normalmente.
“Mi amigue é muito engraçade”

Você provavelmente conseguiu entender essa frase com pouca ou nenhuma dificuldade. Ela atende à algumas regras pré-estabelecidas da língua portuguesa, adequadas à linguagem neutra. Sendo assim, ela está de acordo com a gramática descritiva.
Quando você diz algo como “Me beija” em vez de “Beije-me”, “Eu falei com o mesmo” em vez de “Eu falei com ele”, “Eh” em vez de “É”, você também está fugindo das regras normativas. Você está “estragando” a língua portuguesa tanto quanto uma pessoa que usa linguagem neutra — nada.
Zombar de uma variação linguística não-padrão tem nome, é preconceito linguístico. Acreditar que exista pureza na língua e que ela possa ser estragada, é purismo gramatical, e é feio. E, arrisco a dizer, é elitismo também.
Afinal, é interesse das classes mais altas menosprezar linguagens criadas por pessoas marginalizadas, que fogem aquilo que é aprendido no ensino básico e superior.
Temos exemplos disso quando sulistas zoam a forma de falar de nordestinos, ou quando pessoas julgam outras que nem terminaram o ensino básico por não falarem “perfeitamente” de acordo com a norma padrão.
“Tá bom, mas por que vocês precisam de uma linguagem neutra? “Ele/o” já não é neutro?” Sim e não. De acordo com a morfologia, “o” é um morfema zero, uma forma não marcada. É por isso que usamos “os” e “eles” como plural para se referir a um grupo de pessoas de gêneros variados.
Ainda assim, essa forma é chamada de “masculino” na própria morfologia e é usada para se referir a homens. O que faz com que ela não seja realmente neutra socialmente. Como já expliquei, a língua é uma ferramenta social de comunicação e nem só de gramática (padrão) vive o homem.
Não-bináries são pessoas trans que não se identificam completamente e/ou exclusivamente com um dos gêneros binários (homem ou mulher). A disforia de gênero é um desconforto que pessoas trans sentem em relação a coisas que remetam a um gênero que não é o seu.
Muitas pessoas trans sentem disforia (social) ao terem seus pronomes, e consequentemente, seu gênero, desrespeitados. Não ser tratade pelo gênero correto pode levar à depressão e ao suicídio. Recusar usar o pronome correto de uma pessoa trans binária ou não-binária é violência.
Uma pessoa trans que foi designada homem ao nascer e foi vista assim a vida toda provavelmente não vai ver “ele/o” como neutro. Usar essa linguagem com ela pode ser um lembrete de que você a vê como homem e não como seu gênero de fato.
Assim como usar “ela/a” para pessoas trans designadas mulheres ao nascer.

E, apesar de existirem pessoas não-binárias que usam pronomes binários, algumas não vão se sentir confortáveis com nenhum deles por sua associação com o ser homem ou mulher.
Se você ainda acha “ele/o” é uma forma neutra, então eu proponho um exercício: chame uma mulher cis por essa linguagem e veja a reação dela. Chame um bebê vestido de rosa e com laços na cabeça de “o bebê” ou “filho” e veja a reação da pessoa responsável por ele.
Essas situações acontecem e, não, geralmente a reação não é muito boa. Se a linguagem “ele/o” fosse socialmente neutra, poderíamos utilizá-la sem que ninguém imaginasse que estamos impondo um gênero (masculino) a elus.
Finalmente, falemos de outras questões que parecem… “preocupar” as pessoas na questão da linguagem neutra.

Geralmente, utilizam de outros grupos marginalizados para falar que ela não presta, pois algumas pessoas não conseguem entendê-la.
Primeiro que nós que a usamos estamos dispostos a ensiná-la pacientemente a todos com quem convivemos e a quem tem interesse. Eu estou aqui explicando porque a usamos e pretendo fazer outro texto ensinando como usá-la, mas outras pessoas já fizeram isso.

Imagens: @arielfhitz
Segundo que pessoas desses grupos também conseguem aprender algo novo, e você não deveria falar por elas sem conhecê-las e às suas dificuldades reais. Diminuir a capacidade de pessoas com deficiência de aprender é capacitismo.

Alguns exemplos a seguir.
“E pessoas surdas?!” Esse deve ser o argumento mais sem noção nesse assunto. Quem sabe o mínimo de LIBRAS, sabe também que é uma língua sem desinência de gênero, ou seja, LIBRAS já é neutra.
Foi de livros didáticos de LIBRAS que surgiu o pronome “EL@” que tanta gente usava (e alguns ainda usam) casualmente até pouco atrás. E, se a pessoa surda aprendeu português, também consegue aprender a linguagem neutra nessa língua, assim como qualquer outra pessoa ouvinte.
“Elu/e dificulta a leitura por pessoas disléxicas!” PODE dificultar, assim como abreviações, uso de “eh”, frases inteiras em maiúsculo, entre outras coisas, também PODEM dificultar a leitura dessas pessoas e mesmo assim vocês não deixam de usar.
É preciso lembrar que pessoas disléxicas não são todas iguais e não têm exatamente as mesmas dificuldades, e inclusive algumas delas utilizam a linguagem neutra. O preconceito contra essa linguagem também as atinge.
Lee Pedragon @transfuturismo é um escritor trans e disléxico que fala sobre e faz uso da linguagem neutra em seu livro Andrômeda (disponível no wattpad), tanto na narrativa quanto na vida de seus personagens. https://twitter.com/transfuturismo/status/1243978785533419522
"A tia da faxina nunca vai entender isso!" Lockdown, homeoffice, fake news, esses são só alguns exemplos de estrangeirismos que cada dia mais vem sendo introduzidos no nosso dia a dia e que muitas vezes só podem ser compreendidos através de pesquisa.
Afinal, nem sabendo inglês a gente adivinha qual uso novo o brasileiro resolveu inventar pra palavra. Eu não acho que uma linguagem que altera apenas de uma a três letras em uma palavra já conhecida seja o que a tia da faxina tem mais dificuldade.
Além disso, talvez eu não chegue até ela, mas cheguei até você. E se você tem plena capacidade de entender o que eu estou falando, pode muito bem respeitar a linguagem neutra e utilizá-la, inclusive a ensinando para outras pessoas.
Em conclusão, a linguagem neutra é mais uma das mudanças recorrentes da língua, criada para preencher uma lacuna na língua portuguesa. Seu uso é perfeitamente aceitável.

Se você tem interesse em saber mais sobre isso, siga pessoas trans, principalmente não-binárias.
2. Livros

A Língua de Eulália: Novela Sociolinguística - Marcos Bagno

Introdução à Linguística - José Luiz Fiorin

Manual de Linguística - Mário Eduardo Martelotta

LIBRAS em contexto - Tanya A. Felipe
Aqui outro texto de uma pessoa complementando o que eu disse. https://twitter.com/Thalitabq/status/1266038296779554817?s=19
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