LGBT é uma degeneração burguesa? Ouvimos isso tanto de pessoas da direita tentando dizer que o comunismo odeia LGBTs, quanto de “marxistas” que reivindicam uma esquerda do passado e um pensamento já superado pela dialética. Por isso, segue o fio: +
Para entender de onde saiu a conclusão de que LGBTs seriam uma “degeneração burguesa”, precisamos entender os estudos marxistas sobre gênero e sobre a família. Sendo assim, precisamos visitar Engels em A Origem da Família, do Estado e da Propriedade Privada. +
Engels estudou sociedades anteriores à propriedade privada e notou q n existia um padrão p/ tds elas. Em algumas, homens e mulheres exerciam as mesmas funções, sem levar em conta a força física; outras, tinham alguma espécie de divisão social baseada no sexo biológico. +
Engels observou também que existiam sociedades “pré-monogamicas” e que a divisão de deixar a mulher em “casa” cuidando da prole enquanto o homem ia a caça; e que essa divisão tinha ajudado na evolução da sociedade. +
Porém, essa divisão não era suficiente para a construção de uma estrutura opressiva baseada em “gênero”, porque muitas dessas sociedades não consideravam a mulher inferior, pelo contrário a glorificavam por gerar a vida. +
Além disso, as sociedades eram matrilineares (ou seja, a descendência e a ascendência da família era analisada a partir da mãe), isso porque não se sabia ao certo qual era a origem dos bebes; +
E, portanto, a única certeza é de que eles eram filhos da mãe que o pariu. Para além do desconhecimento, a monogamia não era algo de fato consolidado, ainda que as sociedades começassem a se dividir em “famílias”, +
As relações livres aconteciam e, portanto, uma mulher que tinha se relacionado sexualmente com mais de um homem, não sabia ao certo quem era o pai; mas sempre dá para saber quem é a mãe. +
É aí que Engels percebeu que a monogamia e a família monogâmica surgem com a propriedade privada. Bom, se a propriedade não é mais coletiva, mas sim, privada, eu preciso saber quem será o herdeiro das terras. +
E, para saber isso, as mulheres não podem mais se relacionar de forma livre, pois senão é impossível saber quem é o pai da criança. A monogamia surge assim e por isso, até hoje, ela exerce um poder muito maior para a mulher do que para o homem. +
Isso porque, nos primórdios ela era exigida mais para a mulher do que para o homem, pois o homem que se relaciona sexualmente com mais mulheres, mas também com sua esposa, não interfere na informação final +
de quem são os pais do seu filho, pois para isso basta a sua esposa ter se relacionado exclusivamente com o seu marido. Aqui é importante ressaltar algumas coisas, como por exemplo, a já existência anterior da divisão sexual do trabalho. +
No entanto, a força física e as diferenças biológicas não eram suficientes para criar todo um aparato estrutural de opressão de gênero. Foi com o surgimento da propriedade privada que surge também a concepção de “gênero” e as divisões baseadas nesse conceito. +
O gênero surge junto com a classe, pois a propriedade privada originou essas duas novas coisas. Bom, a partir do momento em que você cria a propriedade privada você divide a sociedade em duas classes. A classe dos que tem a propriedade, e a classe dos que não tem. +
Sendo assim, quando nós marxistas dizemos que gênero e classe são indissociáveis, não dizemos isso somente para afirmar que a opressão de gênero só acabará com o fim do capitalismo; mas também porque gênero e classe nascem de uma mesma origem. +
Obviamente, a opressão de gênero é anterior ao capitalismo, mas ela não é anterior a classe, pois a estrutura social que delimita gênero, nasce com a mesma estrutura social que divide a sociedade em classes sociais: a propriedade privada. +
E onde entra o Estado nisso? Ora, a partir do momento que existe a propriedade privada, é necessário existir um Estado que possa regular e punir as relações sociais que se desenvolvem a partir disso. +
É preciso existir um Estado para que exista a proteção da propriedade privada, pois caso alguém sem propriedade viole a propriedade privada da classe dominante, é o Estado que irá interferir e punir a classe dominada. +
Por mais que alguns anarcocapitalistas acreditem em uma sociedade com propriedade privada e sem Estado, a propriedade privada exige a agência do Estado. +
Portanto, se você deseja destruir o “gênero”, precisa entender que é preciso destruir o sistema que divide a sociedade em classes, e vice versa. Pois destruir a propriedade privada é essencial para destruir tanto a classe, quanto o gênero. +
Pois bem, mas de onde surge a ideia de que LGBTs são degenerações burguesas? Aí, precisamos entender que o conceito de LGBT, de fato surge com a burguesia. +
Isso, porém, não quer dizer que homens não se relacionassem com homens; e nem que mulheres nunca tivessem se sentido atraídas por mulheres antes da ascensão burguesa. +
A questão é que tudo que fugisse da normalidade da familia monogâmica heterossexual não sobrevivia, pois, a estrutura social não permitia, portanto, não tinha sido inventado o conceito hétero e LGBT. +
Na Grécia Antiga, por exemplo, por mais que homens se relacionassem com outros, eles não eram vistos como um casal, mas sim como praticantes de uma relação cultural majoritariamente pedagógica. +
Perceba, porém, que essa liberdade não era concedida as mulheres, que precisavam se manter relacionado somente com seu marido, para que a propriedade privada pudesse continuar existindo. +
Mas como de uma sociedade em que homens (da classe dominante) se relacionavam com outros homens, passamos para a Idade Média que era uma sociedade extremamente religiosa e que reprimia qualquer relação que fugisse do que conhecemos hoje como heterossexualidade? +
Bom, na Grécia Antiga a família era um núcleo econômico, afinal era através da monogamia que a propriedade privada podia existir. Porém, como o trabalho era baseado no escravismo, não fazia diferença se o homem e a mulher da familia dominante estavam juntos ou não. +
Pois a produção vinha dos escravos, não deles, e também pouco importava as relações extraconjugais que os homens mantinham entre eles, isso não afetava diretamente a produção. +
No entanto, na Idade Média, a família passa a ser ainda mais um núcleo econômico, principalmente para a classe dominada. Isso porque os camponeses precisavam de cada membro de suas famílias para sobreviverem. +
Precisavam do trabalho da filha ordenhando a vaca, do trabalho do filho plantando o trigo, do trabalho do pai matando o cabrito e do trabalho da mãe cuidando das crianças. Só assim era possível compor uma mesa com pão, leite e carne, já que não existia salário. +
Sendo assim, uma mocinha camponesa não podia se dar ao luxo de ficar solteira, não tinha como ela ser “independente” sem um salário, ela precisava do trabalho do marido e dos filhos para sobreviver. +
E é por isso que a religiosidade se torna tão forte nesse período, pois qualquer coisa que fugisse da estrutura familiar, colocava em risco diretamente o sistema feudal que era baseado no trabalho camponês familiar. +
Com o surgimento da burguesia, surge o trabalho assalariado e a possibilidade da independencia, e das famílias que fujam da heterossexualidade. +
Repetindo, não é que LGBTs não existissem, mulheres se apaixonaram por outras na Idade Média, porque afinal, a atração sexual por pessoas do mesmo sexo é natural. O que acontece é que não existia a possibilidade de ser LGBT, pois a estrutura social não permitia. +
Não tinha como duas moças se casarem, não só pelo preconceito religioso, mas também porque elas não sobreviveriam sem uma vasta quantidade de filhos para trabalhar em conjunto com elas. +
Antes da burguesia, inclusive, não existia a ideia de amor romântico. Ninguém se casava por amor, mas sim por necessidade. Portanto, uma mulher que se atraia exclusivamente por mulheres, não ia se questionar sobre, pois ela iria casar com seu marido +
Por obrigação mesmo, e não por amor. Com o surgimento do salário e, principalmente, da possibilidade de um casamento entre diferentes classes sociais, o amor romântico precisava surgir como meio de dominação. +
Com o trabalho assalariado, um homem que ganhasse muito bem podia não querer casar, pois ele não precisava de cada membro da sua família para compor a mesa, podia pegar seu salário e ele mesmo ir lá e comprar o leite, o pão e a carne. +
Sendo assim, surge uma vasta literatura que incentiva o amor dentro do casamento, o que faz com que as pessoas passem a buscar se casar pela ideia do “amor”. Com a discussão do amor romântico, as pessoas idealizavam casar com alguém que amasse. +
E aí, portanto, alguns homens começaram a perceber que amavam seus amigos, e não sua futura noiva. Além disso, a burguesia construiu as condições materiais para que novos núcleos familiares fossem construídos, por causa do trabalho assalariado. +
Isso não quer dizer que a família tenha deixado de ser um núcleo econômico. A família monogâmica heterossexual continuava central para a reprodução da classe trabalhadora (mão de obra), e também para a manutenção dos herdeiros da classe dominante. +
Porém, a ideia de amor romântico permite o descobrimento por parte de muitos da sua sexualidade, e isso faz com que a burguesia crie então os conceitos de hétero e homo, reprimindo a homossexualidade para a perpetuação da família heterossexual. +
Ao analisar, portanto, essas e outras questões, alguns comunistas do passado concluíram que, se o conceito LGBT (e no caso na época era apenas homossexual) nasce apenas após a ascensão burguesa; logo, a homossexualidade seria um desvio burguês.
Isso porque, além de tudo, a maioria dos homossexuais que conseguiam se assumir eram de fato da classe dominante, pois os trabalhadores ainda precisavam de cada membro da família para constituir a mesa, mesmo sendo assalariados. +
Quantas famílias não precisam até hoje do salário da filha para pagar o aluguel, do salário do pai para pagar a conta de água, do salário da mãe para pagar a conta de luz e etc? O casamento por amor não era uma realidade na classe dominada, era ainda uma necessidade. +
Isso, fez com que muitos comunistas concluíssem, erroneamente, que LGBT era um desvio pequeno burguês e que a família heterossexual era essencial para o desenvolvimento das sociedades. +
Esse pensamento, porém, foi superado, porque com o avanço das ciencias humanas tivemos acesso a fontes que nossos camaradas do passado não tiveram, e conseguimos compreender que LGBTs sempre existiram, ainda que o conceito não existisse. +
Existiram diversas sociedades indígenas em que mulheres se relacionavam com mulheres. A transexualidade no oriente é uma “tradição” milenar, inclusive existem países que condenam a homossexualidade mas não a transexualidade. +
Portanto, dizer que LGBT é uma "degeneração burguesa ocidental" é, além de estar parado no tempo, ser orientalista e racista para caramba, e ignorar toda a história e tradição de sociedades não-brancas. +
É importante pontuar também que, por mais que alguns comunistas tenham tido sim essa interpretação equivocada, eles não matavam LGBTs como a propaganda anticomunista gosta de dizer. +
Aliás, quem fazia isso eram países de dominância burguesa, afinal a criação do conceito e a separação das relações entre homo e hetero, foi criado pela burguesia a fim de manter a perpetuação da família heterossexual monogâmica. +
Se nossos camaradas do passado cometeram esse equívoco, não precisamos repeti-lo, pois marxismo não é dogma, e o materialismo histórico dialético é uma ciência que está em constante mudança e aprimoramento. +
Sim, os LGBTs só passam a existir depois da burguesia e é fato que foi essa classe que criou as condições materiais para a existência das relações homoafetivas. No entanto, Marx mesmo disse que o capitalismo constrói as armas que irão destruí-lo.
O que ele quer dizer com isso? Bom, a classe trabalhadora é a classe social com mais chance de se organizar politicamente enquanto classe da história e essa “liberdade” se dá por causa do trabalho assalariado. +
Não é que camponeses não se organizavam, é só que era mais difícil para eles, uma vez que eles moravam na propriedade do senhor feudal e não ganhavam salário. Como é que eles iam se reunir? Onde eles iam se reunir? +
Com que dinheiro iam comprar panfletos para distribuir, se não ganhavam salário? Hoje em dia, o trabalhador pode chamar outros trabalhadores para a sua casa e planejar matar o patrão, afinal ele não vai saber. +
Portanto, a burguesia ao firmar o trabalho assalariado, constróis as condições materiais para a destruição da própria burguesia, pois o trabalho assalariado permite organização da classe explorada, que pode vir a destruir a própria burguesia. +
Ora, podemos interpretar essa frase de Marx, também para a questão LGBT, é sim a burguesia que constrói a condição para a existência dos LGBTS, e é essa existência que pode colocar um fim na familia heterossexual monogâmica que é uma das bases do capitalismo. +
As condições de organização política da classe como nós conhecemos hoje foram construídas pela burguesia. E ninguém vai chamar organizações proletárias de “desvio burguês” só porque elas passaram a existir depois da ascensão burguesa, né?
Da mesma forma, não faz sentido chamar LGBTs de degeneração burguesa. O comunista que não entende isso, não entende de materialismo dialético, desculpa. Hoje, a luta LGBT precisa fazer parte da luta comunista. Fim da thread.
Por que não é correto condenar Che Guevara por ele não ter compreendido a luta LGBT em sua profundidade https://twitter.com/veve_dd/status/1264555196803416067?s=19
https://twitter.com/veve_dd/status/1264552937969405964?s=19
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