Um amigo meu, também gay, no alto dos seus sessenta e poucos anos e profundamente deprimido, no telefone desabafou: “Eu que nasci, aliás, todos nós gays que nascemos até o início dos anos 70, nascemos muito mal. Viver o auge da nossa sexualidade entre os anos 80 e meados dos 90👇🏻
foi um pesadelo. Além do preconceito por sermos gays, evitávamos, às vezes entre nós mesmos pela ignorância sobre a AIDS, o contato com nossos colegas doentes. Quando o amor e a compaixão falavam mais alto, passávamos nós também, não infectados, a viver um isolamento social: 👇🏻
ao lado de um amigo ou namorado doente, restava ficar em casa curando feridas ou num hospital onde médicos e enfermeiros, na maioria das vezes, tinham receio em tocar no paciente, ou, ainda, nas ruas encarando o distanciamento (e julgamento) das pessoas...[e aí começou chorar]👇🏻
sem contar os incontáveis velórios... Pavi, você tem ideia do é enterrar um amigo? Alguém da sua idade que era ser companheiro de aventuras, eco das suas risadas e ombro pras suas tristezas? Inumar o amigo mais velho que foi seu suporte para encarar a vida gay? Sepultar, ainda,👇🏻
aquele amigo mais novo, às vezes bem mais novo, que tínhamos como filho, nosso protégée? Ainda corta meu coração. Ainda sinto a dor. Ainda choro quando vejo alguma foto.
E trabalho? Era extremamente difícil. As portas do Mercado estavam fechadas pra nós; pelos menos as ditas 👇🏻
profissões tradicionais. Tínhamos que esconder a sexualidade (até 90 e poucos uma doença)... se ficávamos doentes então... era o fim em todos os sentidos.
Meu amigo, vivi esse inferno por quinze anos. Vivi o isolamento por 15 anos. Vivi a morte por 15 anos. Vivi o risco do 👇🏻
desemprego por 15 anos.
A História é macabra comigo... com todos os gays da minha idade.
O sol nasceu e orgulho e a alegria de ser gay e viver a homossexualidade eram possíveis... Mas, para nós sexagenários, septuagenários (se é que existam muitos), esse sol, essa alegria não 👇🏻
durou 25 anos.
Nessa pandemia, somos grupo de risco. Mais uma vez estamos isolados e, como a maioria de nós nunca se casou ou teve filhos, sozinhos. Voltamos a encarar o distanciamento de segurança, voltamos ao luto (sem possibilidade de velório), voltamos ao medo da miséria, 👇🏻
pois a maioria de nossa geração é autônoma. Enfim, voltamos ao medo... inclusive ao medo do sexo com a desconfiança (e prudência) de que um poderá infectar o outro.
Esse desabafo, Pavi, é porque perdi um amigo. Ele sobreviveu ao HIV, mas sucumbiu ao COVID.
Nós gays de60 ou mais👇🏻
somos os Jós da modernidade.
Meus poemas prediletos eram do Bandeira, do Drummond e do Quintana... poemas coloridos, poemas reconfortantes, cheios de afeto.
Infelizmente, são somente os poemas preferidos.
O poema de nossas vidas, que o destino tornou icônico, é de Castro Alves:👇🏻
‘Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!…👇🏻
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…’”

E, pela primeira vez depois de um longo tempo, chorei.
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