1) Jesus morre na Cruz

Segundo a narrativa dos evangelistas, Jesus morreu, rezando, à hora nona, isto é, às três horas da tarde. Segundo Lucas, Ele extraiu a sua última oração do Salmo 31: ‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23,46; Sl 31,6).
2) Segundo João, as últimas palavras de Jesus foram estas: ‘Tudo está consumado. No texto grego, esta palavra (tetélestai) alude ao início da Paixão, à hora do lava-pés, cujo relato é introduzido pelo evangelista sublinhando que Jesus amou os seus ‘até o fim (télos)’.
3)Esse ‘fim, esse extremo cumprimento do amar foi alcançado nessa altura, no momento da morte. Jesus foi verdadeiramente até o fim, até o limite e para além do limite. Ele realizou a totalidade do amor, deu-Se a Si mesmo.
4)No cap. 6, ao tratar da oração de Jesus no monte das Oliveiras, abordamos, com base em Heb. 6,9, um outro significado da mesma palavra (teleioun); na Torá, ela significa ‘iniciação’, consagração com vista à dignidade sacerdotal, isto é, passagem total para a propriedade de Deus
5) Penso que, recordando a oração sacerdotal de Jesus, podemos subentender também aqui esse significado. Jesus cumpriu até ao fundo o ato de consagração, a entrega sacerdotal de Si mesmo e do mundo a Deus (Jo 17,19). Assim, nesta palavra resplandece o grande mistério da Cruz.
6)Cumpre-se a nova liturgia cósmica. Em lugar de todos os outros atos cultuais, entra a Cruz de Jesus como a única verdadeira glorificação de Deus, na qual Deus Se glorifica a Si mesmo por meio d’Aquele em que nos dá o seu amor e assim nos atrai rumo às alturas para Si.
7) Os Evangelhos sinóticos caracterizam explicitamente a morte na Cruz como acontecimento cósmico e litúrgico: o sol escurece-se, o véu do templo rasga-se em dois, a terra treme, os mortos ressuscitam.
8) Ainda mais importante do que o sinal cósmico é um processo de fé: o centurião (comandante do pelotão de execução), abalado com os acontecimentos que vê, reconhece Jesus como Filho de Deus: ‘Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!’(Mc 15,39).
9) Junto da Cruz, tem início a Igreja dos pagãos. A partir da Cruz, o Senhor reúne os homens para a nova comunidade da Igreja universal. Em virtude do Filho sofredor, eles reconhecem o verdadeiro Deus.
10) Enquanto os romanos, como forma de intimidação, deixavam propositadamente pender do instrumento de tortura depois da morte os crucificados, segundo o direito judaico eles deviam ser retirados no mesmo dia (Dt 21, 22-23).
11) Por isso, era tarefa do pelotão de execução acelerar a morte, quebrando-lhes as pernas. Assim aconteceu também no caso dos crucificados no Gólgota. Aos dois ‘salteadores’ foram quebradas as pernas.
12) Chegados a Jesus, porém, viram que Ele já estava morto; então, renunciaram a quebrar-Lhe as pernas; em vez disso, um deles trespassou o lado direito – o coração – de Jesus e logo brotou sangue e água’(Jo,19.34).
13) Era a hora em que eram degolados os cordeiros pascais; para estes, vigorava a prescrição segundo a qual não se lhes devia quebrar nenhum osso (Ex 12,46). Jesus aparece aqui como o verdadeiro Cordeiro pascal, que é puro e perfeito.
14) Por conseguinte, nesta palavra, podemos vislumbrar também uma recordação tácita do início da história de Jesus, daquela hora em que o Batista dissera: ‘Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo’ (Jo 1,29).
15) Aquilo que então devia permanecer ainda incompreensível – era apenas uma misteriosa alusão a algo futuro – é agora realidade.
Jesus é o Cordeiro escolhido pelo próprio Deus. Na Cruz, Ele carrega o pecado do mundo e ‘tira-o para fora’.
16) Mas, ao mesmo tempo, ressoa também a parte do Salmo 34 onde se lê: ‘Muitas são as tribulações do justo, mas o Senhor o livra de toas elas. Ele guarda todos os seus ossos, nem um só será quebrado’.
17) O Senhor, o Justo, sofreu muito, sofreu tudo, e todavia Deus guardou-O: não lhe foi quebrado nenhum osso.
18) Saíram sangue e água do coração trespassado de Jesus. Em todos os séculos, a Igreja, segundo a palavra de Zacarias, olhou para este coração trespassado e reconheceu nele a fonte da bênção indicada antecipadamente no sangue e na água.
19) A palavra de Zacarias impele mesmo a buscar uma compreensão mais profunda daquilo que aí aconteceu.

Um primeiro nível desse processo de aprofundamento, encontramo-lo na Primeira Carta de João, que retoma vigorosamente o discurso do sangue e da água saídos do lado de Jesus:
20) ‘Este, Jesus Cristo, é Aquele que veio com água e com sangue; e não só com a água, mas com a água e com o sangue. É o Espírito que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade. +
21) Pois são três os que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue; e os três coincidem no mesmo testemunho’ (5, 6-8).
22) Que pretende dizer o autor com a afirmação insistente de que Jesus veio não só com a água, mas também com o sangue? Pode-se provavelmente supor que aluda a uma corrente de pensamento que dava valor apenas ao Batismo, mas punha de lado a Cruz.
23) E talvez isso signifique também que se considerava importante só a palavra, a doutrina, a mensagem, mas não ‘a carne’, o corpo vivo de Cristo, exangue na cruz;
24) significa que se procurava criar um cristianismo de pensamento e das idéias, do qual se queria extrair a realidade da carne: o sacrifício e o Sacramento.
25) Os Padres viram neste duplo fluxo de sangue e água uma imagem dos dois sacramentos fundamentais – a Eucaristia e o Batismo – que brotam do lado trespassado do Senhor, do seu coração. São a corrente nova que cria a Igreja e renova os homens.
26) Mas os Padres, diante do lado aberto do Senhor que dorme na cruz o sono da morte, pensaram também na criação de Eva a partir do lado de Adão adormecido,+
27) ... vendo assim na corrente dos sacramentos, ao mesmo tempo, a origem da Igreja; viram a criação da nova mulher a partir do novo Adão."
Bento XVI. Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressureição, 2011 págs. 182-185
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