Já estou há 2 horas na estrada.
Quando cheguei, o cara da poltrona de trás já estava falando com a namorada.
A namorada não dá um pio.
Ele não faz pausa pra respirar.
Ele chama Marcelo.
Marcelo não cala a boca.
Marcelo fala mais alto que o meu fone de ouvido.
Marcelo, caralho.

Marcelo já falou sobre biscoito/bolacha.
Já falou sobre os perigos do autoritarismo.
E sobre quindim.
A namorada não verbaliza nada.
Marcelo parece estar viajando com o cadáver da namorada.
...
Marcelo está falando de teatro.

Marcelo tem um apartamento em Mauá.
Que na verdade é o pai dele, que também chama Marcelo.
O pai deve estar lá agora, falando para uma mulher de papel machê sentada no sofá há 28 anos.
Na mesma posição.
O vizinho de porta do Marcelo Sênior deve ter insônia.
E deve chamar Felipe.

Marcelo está fazendo barulhinhos de quem está animado (uhuhuhu).
Ele parece doido pra chegar em São Paulo, e está falando para a defunta sobre grandes mentes que subiram no ombro de gigantes.
Passei por Aparecida e rezei pela alma da namorada morta.
Eu nem sou católico.

Marcelo disse que gosta muito de números.
Claro que gosta.

A namorada está viva!
Ela fez um "nnnnngh".
Mas pode ter sido eu, não sei.

Com a música nesse volume, escutei Marcelo dizer as palavras "taxista meigo".
Eu tenho certeza absoluta que essas duas palavras jamais foram ditas juntas assim.

Marcelo é cliente Uniclass.

Ok, estou em casa e de banho tomado. E agora posso dizer que: VOCÊS NÃO IMAGINAM O DESFECHO.

Fomos chegando na rodoviária, e eu estava no primeiro banco da frente. Marcelo imediatamente atrás do meu banco, com o espírito rarefeito ao seu lado, no corredor.

levantei pra pegar a mochila que estava em cima, no bagageiro, e a namorada se levantou junto comigo, agitada...

Ela tropeçou em mim tentando alcançar a porta, e quase foi de boca no chão. Eu segurei ela de mau-jeito, e ela me agradeceu meio "mmmbrigadmmmm" e foi pra escada

Ela tinha olheiras do tamanho da Groelândia.

Olho pra trás, pro Marcelo. Vestido com uma camiseta laranja do Goku.

Então, Marcelo se levanta, apressado, olhando pra namorada....

"Namorada"

E ele grita "tchau Rosângela, prazer em te conhecer!"

!!!

Não era namorada do Marcelo.
Era uma passageira, outrora um ser vivo, que calhou de sentar ao lado dele.
E sua alma estava sendo sugada pelo vórtice de aleatoriedade desde Volta Redonda.

Fiquei inconformado que alguém conseguisse despejar tanta informação pessoal em cima de um estranho sem se tocar.

Desci logo atrás de Rosângela Ressuscitada, e a vi se misturando à multidão do terminal.

Saí em seguida, Marcelo pouco atrás de mim. Ele não puxou papo...

...mas no último degrau da escada o Marcelo pisou no meu calcanhar.

Filho da puta.