15 anos atrás, 4 de fevereiro de 2004, falecia Hilda de Almeida Prado Hilst.
Aproveitando a data, segue uma thread sobre essa mulher maravilhosa e revolucionária:
Hilda Hilst nasceu em 1930, em Jaú, interior de São Paulo. Seus pais, Bedecilda Vaz Cardoso e Apolônio de Almeida Prado Hilst, não eram casados oficialmente. Sua mãe, já com um filho e separada do primeiro marido, era considerada uma mulher emancipada para a época.
Quando Hilda nasceu, dia 21 de abril de 1930, a primeira reação de Apolônio, ao saber que a filha era uma menina, foi dizer: Que azar!
A relação entre Hilda e o pai é muito intensa e polêmica. Poeta e vítima de transtornos mentais, Apolônio não conviveu com a filha na infância.
Essa figura de um pai perturbado, mas simultaneamente ligado à poesia e ao movimento modernista, aparece frequentemente nas obras de HH. Ele e Bedecilda se separaram quando Hilda ainda era bebê.
O caso mais marcante, talvez, envolvendo o pai, é quando Hilda adolescente foi visitá-lo. Ela conta que ele, fragilizado mentalmente, a confundiu com a mãe e ficou lhe pedindo "três noites de amor". Isso aparece em vários livros dela.
Na foto, Bedecilda e Apolônio.
Aos 18 anos, Hilda entrou na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Não chegou a exercer a profissão de advogada, mas, por conta da Faculdade, conheceu e se tornou grande amiga de Lygia Fagundes Telles, que também foi estudante da casa.
Na foto, as duas na década de 50.
Essa amizade durou toda a vida (de Hilda, Lygia hoje tem 95 anos). Hilda morria de ciúmes de Lygia, principalmente com Clarice Lispector. As duas liam a obra uma da outra, se ajudavam. Hilda dizia que queria morrer de mãos dadas com Lygia.
Na foto, as duas na Casa do Sol.
Ainda estudante de direito, em 1950, aos 20 anos, Hilda lança seu primeiro livro: "Presságio". São poemas metafísicos, que impressionam a poeta já estabelecida Cecilia Meireles. "Quem disse isso precisa dizer mais", afirmou Cecília.
Na foto, um dos poemas do livro.
Mulher jovem, rica e bonita, Hilda atraía imensamente a atenção dos homens. Durante sua juventude, teve inúmeros casos, inclusive com famosos, como o poeta Vinicius de Moraes e o ator Dean Martin.
Aliás, VÁRIOS escritores da época ficaram doidos com ela, como Drummond.
HH contava várias versões de um mesmo caso, como o encontro com Marlon Brando. Em entrevistas, afirma que bateu no seu quarto de hotel e ele estava com outro homem. Em outras, diz que a recebeu mal, dizendo: só porque é uma mulher bonita pensa que pode acordar um homem essa hora?
Durante a década de 50 e 60, Hilda nunca parou de escrever poesia. Lançou um livro de poemas atrás do outro, firmando sua poética como algo etéreo, metafísico, ligado às aflições da alma e da existência humana.
Abaixo, a lista de todos os livros de poesia até 1967.
Em 1963, Hilda conhece Dante Casarini. Ela o viu, pela vitrine, experimentando uma roupa numa loja. Ousada, entrou na loja e lhe disse: Meu nome é Hilda, esse é meu telefone. Quero me encontrar com você.
Na mesma noite, eles saíram e começaram um relacionamento.
Os dois se apaixonaram muito intensamente. Hilda não queria se casar, achava antiquado. Mas as necessidades cotidianas vieram e, por aspectos práticos (um pouco também por pressão de Bedecilda), os dois se casaram em 1969.
Motivada pela leitura de "Carta a El Greco", de Nikos Kazantzakis, no qual o autor defende uma vida de isolamento próxima à terra, Hilda decide largar a vida de prazeres em São Paulo e se muda para uma chácara no interior de Campinas, a Casa do Sol, onde vive até o fim da vida.
Essa mudança influencia radicalmente a sua obra, já que agora HH pode se dedicar integralmente à literatura, sem as distrações da cidade.
Entre 1967 e 1969, HH escreve 8 peças de teatro, todas extremamente críticas à ditadura militar e à repressão das grandes instituições.
A escrita de sua dramaturgia é feita simultaneamente à de seu primeiro livro em prosa, "Fluxo-floema". Essa fase é importantíssima na sua obra, inaugurando uma estética menos etérea e mais terrena, firme no chão, aos problemas do ser humano AQUI e AGORA.
Das peças, recomendo muito a leitura de "A Empresa (A Possessa)", que conta a história de América, uma postulante rebelde em um colégio religioso. Essa peça é interessante pois recupera alguns fatos autobiográficos de HH, que também se educou em um colégio religioso.
A religião é um tema recorrente na obra. A busca de Deus aparece em praticamente todos os livros. Deus esse que atende por vários nomes: a Grande Face, Uma Superfície de Gelo Ancorada no Riso, O Inominável, O Incomensurável, e meu preferido: Um Flamejante Sorvete de Cerejas.
Depois da passagem pela dramaturgia, HH cai de cabeça na prosa. "Fluxo-floema", lançado em 1970, é seu primeiro livro de contos, uma porrada em forma de linguagem. Com fluxos de consciência e uma narrativa vertiginosa, HH representa uma nova forma de escrever prosa no Brasil.
Esse livro é muito poderoso. Fala das torturas da ditadura, da repressão ao pensamento livre, do ódio aos intelectuais e à palavra. Tudo muito contemporâneo ainda, infelizmente.
Fiz uma performance com alguns trechos desse livro, quem quiser conhecer: https://www.facebook.com/brunakalilothero/videos/1967948383422510/
Pra quem ficar com preguiça, aqui um vídeo curtinho lendo um trecho porrada também:
Voltando. Após a passagem pela dramaturgia e pela prosa, marcada pelo uso de diálogos e fluxos vertiginosos, HH volta à poesia em 1974 com "Júbilo, memória, noviciado da paixão", na minha humilde opinião, sua obra prima poética. Abaixo dois da série "Dez chamamentos ao amigo":
Nesse livro também está a série maravilhosa "Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio". Zeca Baleiro musicou esses poemas de amor, que foram interpretados por nomes como Maria Bethânia, Zélia Duncan e Angela Roro. Apenas ouçam:
E nesse livro ainda tem os sensacionais "Poemas aos homens do nosso tempo". Extremamente políticos, esses textos me ajudam muito a seguir hoje nesses tempos sombrios.
A partir daí, HH vai escrevendo tanto poesia quanto prosa, um livro mais fodão que o outro. Mas uma coisa a incomoda: o silêncio da crítica e do público. Ela reclamava sempre de não ter leitores, de não conseguir vender livros.
Isso chega ao ápice quando ela descobre o mercado dos best-sellers, em que os autores ganham milhões de dólares pelos livros. Ela fica puta demais com isso. Em entrevista a Caio Fernando Abreu, afirma que muito dessa exclusão vem do machismo:
É aí que Hilda decide radicalizar. Vcs não querem me ler pq me acham difícil, é? Então eu vou escrever pornografia a partir de agora, pq é isso que brasileiro, esse povo safado, gosta.
Em 1990, ela lança "O Caderno Rosa de Lori Lamby", o diário de uma prostituta de 8 anos.
Explícito, O Caderno Rosa narra com detalhes as aventuras sexuais de Lori com homens mais velhos. E o pior: ela GOSTA. Ela adora lamber e ser lambida. Óbvio que o livro choca HORRORES a família tradicional brasileira.
Abaixo, um panorama da reação geral da época.
Essa entrevista resume bem o que aconteceu. Eu racho de rir toda vez que assisto, meus alunos adoram também.
Depois de Lori, ela lança "Contos d’escárnio. Textos grotescos" (1990) e "Cartas de um sedutor" (1991), também "pornográficos".
Claro, isso causa algumas reações, ela vende alguns livros, mas continua insatisfeita.
Em 1993, vence o Jabuti, o maior prêmio literário do Brasil, por "Rútilo Nada". Ela havia vencido também em 1984 por "Cantares de perda e predileção".
Muito desencantada pela literatura e falta de reconhecimento, HH vai se isolando cada vez mais. Continua, como sempre fez, recebendo amigos e artistas na Casa do Sol, mas nos últimos anos de sua vida, escreve cada vez menos. Esse doc de 2002 mostra isso:
Esqueci de falar uma coisa lá atrás: em 1982, HH lança "A Obscena Senhora D", considerada sua obra prima. A escrita do livro é marcada por uma experiência terrível de um relacionamento abusivo com seu primo Wilson Hilst, 20 anos mais novo. Ele a ameaçou de morte com uma arma.
Quem for de BH e se interessar, a atriz Luciana Veloso faz um solo a partir dessa história, e a peça é agora no fim do mês. A dramaturgia e direção são de Juarez Guimarães Dias, que foi amigo de Hilda e é especialista em sua obra:
https://www.vaaoteatromg.com.br/detalhe-peca/belo-horizonte/a-obscena-senhora-h
Outra coisa que esqueci (desculpa gente, é coisa demais): Hilda era apaixonada com cachorros. A Casa do Sol resgata e acolhe, até hoje, cachorros abandonados. Em algumas épocas, já chegou a ter 90 cachorros. Ela cuidava e sabia o nome de todos.
Em 2018, Hilda foi homenageada pela Feira Literária Internacional de Paraty, a @flip_se, e teve sua obra como foco de discussão pública novamente. Hoje, sua obra de poesia e prosa saiu completa pela @cialetras, seu teatro pela LPM e suas crônicas pela Nova Fronteira.
Aproveitando o espaço, eu tenho um livro de poesia extremamente ligado à obra da Hilda, que dialoga com a sua poética e fala de desejo, da mulher, do corpo. Quem quiser, manda inbox <3
Se eu posso te dar um conselho, esse conselho é #leiahilda. Ela mudou a minha vida. Espero que mude a de vocês também.
#leiamulheres #leiaHH
Quem curtiu a thread, fiz aqui uma sobre literatura em geral, com curiosidades sobre vários escritores: https://twitter.com/brunalacuna/status/1083502082693439488
E aqui uma sobre literatura e escritores LGBT: https://twitter.com/brunalacuna/status/1086261963745832960
E esse fato maravilhoso sobre Hilda e os discos voadores, assim como outros, tão nessa outra thread: https://twitter.com/brunalacuna/status/1083512586275033090?s=19
E uma outra coisa que também esqueci de colocar: na década de 70, Hilda fez várias gravações caseiras de vozes dos mortos. Falou com Kafka, Clarice Lispector, sua mãe. Isso virou o filme "Hilda Hilst pede contato", de Gabriela Greeb.
Pronto, agora é isso! #leiahilda
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